segunda-feira, 18 de julho de 2011

XINGU VIVO PARA SEMPRE

Sem a Floresta Amazônica, nosso futuro dormirá para sempre no passado

“É verdade que, depois que homem branco chegou, o homem vermelho nunca mais foi o mesmo. Ele trouxe o espírito da doença, a gripe que matou nosso povo. E o espírito da ganância que roubou nossas árvores e matou nossos bichos. No passado, já fomos milhões. Hoje, somos somente cinco mil índios à beira do Xingu, não sei por quanto tempo.”(Cacique Mutua)

Já nos alertava Camões, em Os Lusíadas, que é mais prudente ouvir a voz do Velho do Restelo – um dentre as inúmeras pessoas que se amontoaram na praia do Restelo para se despedir dos navegantes - do que seguir os impulsos progressistas de Vasco da Gama que, a serviço do Rei D. Manuel, partiu em 1497 em busca da riqueza e glória no além mar. Passados mais de 500 anos, a reforma do Código Florestal Brasileiro e o projeto de construção da mega usina hidrelétrica Belo Monte ameaçam a sobrevivência da maior floresta tropical do planeta, trazendo à tona, novamente, a questão do progresso a qualquer custo. Tanto a Belo Monte quanto as mudanças no Código Florestal obedecem à lógica do capital e do modelo desenvolvimentista.
Belo Monte, se for construída, irá provocar enormes impactos socioambientais, alagando 516 quilômetros quadrados em pleno coração da Floresta Amazônica, que tem um papel essencial ao equilíbrio climático global e onde habitam metade de todas as espécies terrestres do mundo (incluindo cerca de 180 etnias indígenas); provocando o deslocamento de mais de 30 mil habitantes, a migração de 200 mil pessoas para a região de Altamira (Pará), a expulsão de 13 mil índios, comunidades tradicionais ribeirinhas e agricultores, o desvio de 80% das águas do rio Xingu, além do desaparecimento de paisagens únicas, sítios arqueológicos e uma riquíssima biodiversidade.
O novo Código Florestal, por sua vez, irá significar a concessão de maior impunidade para os madeireiros da Amazônia; a legalização de áreas de risco (encostas, topos de morros e várzeas), aumentando a chance de tragédias ambientais; a aceleração do desmatamento e perda da biodiversidade, agravando os impactos sobre o meio ambiente e beneficiando, exclusivamente, os fazendeiros e proprietários de terra. A progressiva diminuição de mata ciliar no entorno dos rios já vem sendo sentida nas catástrofes provocadas pelas enchentes no Brasil inteiro e só tende a se agravar.
No mesmo dia em que essas mudanças foram aprovadas pela bancada ruralista da Câmara dos Deputados (ironicamente no Ano Internacional das Florestas), o país acordou com a notícia do assassinato, a tiros, do líder ambientalista João Carlos Ribeiro da Silva e sua esposa, mortos em defesa da Amazônia, da mesma forma que Chico Mendes e vários outros ambientalistas, escancarando para o mundo inteiro que, quando os interesses dos fazendeiros estão em jogo, quem dá as cartas nesse país, onde persistem fortes traços do coronelismo colonialista, é o agronegócio.
Não apenas no Brasil, a intensificação de ocorrências de desastres ambientais evidencia, cada vez mais, que o modelo de desenvolvimento baseado na exploração e consumo ilimitados dos recursos naturais, atingiu uma situação-limite, colocando em risco a continuidade da vida no planeta e suscitando uma crescente retomada dos temas ambientais que marcaram os anos 70. As crises do petróleo, do abastecimento de água e de alimento, as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade e outros dilemas do mundo contemporâneo, confirmam as tendências anunciadas no livro Limits to Growth, de 1972, mostrando que o mundo seguiu exatamente a trajetória insustentável definida como cenário provável neste livro premonitório.
Atualmente, a “pegada ecológica” humana já ultrapassa em 30% a capacidade de regeneração do planeta. Se não reduzirmos substancialmente nosso consumo, a economia mundial entrará em colapso em meados deste século. Mas a causa principal desse quadro de “agonia planetária”, como define Edgar Morin, não reside na superpopulação de quase sete bilhões de habitantes, mas principalmente no enorme desequilíbrio na distribuição de renda, no desregramento econômico mundial e na relação predatória e irracional com a natureza, conduzindo-nos a uma situação de insustentabilidade do modus vivendi hegemônico.
Em contraposição, a Floresta Amazônica poderia se tornar o ponto de partida para um desenvolvimento ecossocial do Brasil, que é uma potência ambiental por sua abundância em terra, água, sol e biodiversidade. Esses são os ingredientes que deveriam ser utilizados no aproveitamento econômico da biodiversidade da floresta com envolvimento da população local, tais como a fruticultura nativa, os diversos tipos de óleos e a imensa variedade de fitoterápicos e fármacos ainda não descobertos e com grande potencial de cura de diversas doenças.
No próximo ano, teremos a Rio+20: que realidade o Brasil terá a apresentar nesta conferência mundial, transcorridos 20 anos da Eco-92? A perspectiva de mais desmatamento e impunidade para os crimes ambientais? A perda da biodiversidade e o aumento da emissão de gases de efeito estufa? O aumento das fronteiras agrícolas para beneficiar o agronegócio?
Nosso sentido de percepção da realidade ainda é muito falho e fragmentado. Como afirma Morin, “os indivíduos de hoje, consomem o presente, deixam-se fascinar por mil futilidades, tagarelam sem jamais se compreenderem na torre de Babel das bugigangas”. Na metáfora do Mito da Caverna, Platão demonstra que somos como um grupo de homens sentados em uma caverna, voltados o tempo todo para os fundos, percebendo apenas as sombras e imagens fantasmagóricas causadas pelo que acontece do lado de fora da caverna, mas não o que de fato acontece. Acreditamos que essas imagens são verdadeiras, tomando o espectro pela realidade. O que vemos são apenas reflexos, mas certos de que essa é a única realidade possível, permanecemos estáticos, sem mudar de posição. A mídia, com destaque para a televisão, representa hoje a parede no fundo da caverna e tem como função, como alerta Jean-Luc Godard, produzir o “esquecimento”, através de uma profusão de notícias desconectadas, que impedem a percepção clara da realidade.
A grande encruzilhada do século XXI parece residir na imperativa tomada de consciência da nossa identidade planetária. O que está em jogo é, de um lado, a preservação da diversidade cultural e natural ameaçados de homogeneização e destruição e, de outro, a transformação revolucionária das relações sociais e dos valores individuais e coletivos, a partir da liberação de nossos potenciais psíquicos, espirituais, éticos, culturais e sociais. Trata-se, enfim, da necessidade de substituirmos o conceito de desenvolvimento pautado na visão economicista por um conceito de desenvolvimento multidimensional.
O desafio crucial da humanidade, portanto, é o do despertar da percepção coletiva em relação à urgência por atitudes e ações que minimizem a crise planetária. E é somente a partir da identificação e do enfrentamento dos grandes males do mundo contemporâneo – como a miséria, as guerras e o imenso desequilíbrio ecológico - que poderemos livrar nossa mãe Terra de um destino trágico. Não há mais tempo para a inércia. Como nos adverte o Cacique Mutua: “O homem branco devia saber que nada cresce se não prestar reverência à vida e à natureza. Tudo que acontecer aqui vai voar com o Vento que não tem fronteiras. Recairá um dia em calor e sofrimento para outros povos distantes do mundo.”

Texto de Sandra Mara Ortegosa, arquiteta, antropóloga e ativista no Movimento Nova Friburgo em Transição. Publicado no http://www.forumseculo21.com.br/impressa/

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